O blog está se tornando mocinho - e por conta disso esteve tomando várias horas sozinho trancado no quarto sem o menor motivo aparente. No melhor dos pontos de vista, essa pausa contemplativa rendeu bons frutos vindos de alguma espécie de matutação, ao qual o ócio retornou positivas perspectivas sobre os enunciados soltos ao longo do ano. dollhouse é uma experiência que requer esse espaço de contemplação: o foco está no idealismo, não na execução. O que podemos circular para todas as colocações do duo de manequins é denotado com proeminência aqui, pela falta de apoio audiovisual que distraia o público durante a execução do manifesto contra e através da indústria.
Com uma pauta reduzida: de um jeito popular, carismático e pouco acentuado, as manequins do lado leste executam o processo da contracultura contemporânea (a transformação que vem de dentro do produto que se quer mudar), na lavagem eufórica e inofensiva de faixas dançantes. Muito se assemelha, em consideração, ao cânone cômico-econômico Hey QT, entre a vocalista QT e as produtoras SOPHIE e A. G. Cook, que dá o grado de massificar o idealismo por trás da PC Music, abordado em ares leves no artigo Futuros primitivos na música (reciclando o mesmo link todo dia: síndrome repetitiva ou conteúdo impressionantemente holístico?), só que de um jeito menos amedrontador por aparar os extremos e ter algum tipo de continuidade que apaga os rastros performáticos eloquentes da causa de "um minuto só".
Parte 1. Nada de novo no restaurante, com muitos reclamando da comida
A primeira impressão da grande crítica da web foi surpresa com subtons de desprezo para o EP, que carrega, entre sete canções, cinco instrumentais descritos como trabalhos em andamento, reiterados no Twitter como faixas que eventualmente ganhariam letras e rearranjos. Esse é o ponto de partida para um bate-e-volta de picuinhas entendíveis da ambiência por piada pronta de que o consumidor está pagando por um corpo esfacelado na mesa de cirurgia.
A entrelinha foi apontada como presuntuosa, em que a explicativa ao redor da escolha não soava verdadeira. Pelo tamanho das conquistas de FEMM - em sua carreira mínima e de ouvinte limitado -, a dupla não era obrigada a correr para preencher lacunas de novas músicas e isso se aproximava aos espaçados e não anunciados lançamentos do projeto.
A acidez opinativa, no entanto, argumentava (também) acima da realidade, ao abrir portas para uma réplica satírica sobre o alvo de consumo da carreira dos manequins: iniciado na net, juvenil, com juízos e mantimentos que só afetam o ninho internauta, é uma falácia a acusação econômica para gente que não expressa consumo artístico notável. Um dos grandes problemas da diretriz, que reforça o crescimento e representação lenta do grupo de electropop, é o público consumidor não manifestar comercialmente o apreço pelas peças culturais, mas aceitar a existência de um pico sociológico-etário que afirma graus de aproveitamento indireto do produto, pelas esferas de streaming e compartilhamento de mídias. A conversa é sinuosa por não ser correto admitir uma culpa totalitária ao receptor - essencialmente quando, na prática, há falhas estruturais nos rumos tomados desde o início do projeto. Logo, a tática de suspense por privar o consumidor da totalidade da obra é efetiva quando essas mesmas serão executadas em sua completude no showcase do EP, tal qual assentido por tweets e no mistério à volta de seus anúncios.
O lucro é caracterizado pela presença nos espetáculos das artistas e a publicidade deve comover-se com isso. O artifício contém essa sutil inteligência capitalista, que por justamente se escorar numa metodologia autodestrutiva é esperado de uma limitação espacial: apenas o público doméstico é capaz de participar ativamente da ocorrência, enquanto a massa pronunciável do duo é, pela confecção de seu programa, internacional.
Isso é o que torna todos os lados corretos em suas manifestações - e as coisas, nas melhores das intenções, não tão bonitas para a dupla. Entretanto, FEMM não esteve assim tão longe de suas realizações, que desconfigura o espanto argumentista da internet: a mesma estrutura já foi utilizada antes pelo conjunto, com a mesma petulância mascarada por uma linguagem tênue.
Após a convulsão lo-fi, datada e espetacular de Femm-Isation e um considerável hiato de anúncios musicais, a volta veio na forma de um primeiro álbum físico de dez faixas, em que apenas duas passavam-se como originais com seus respectivos clipes e promoções. O resto dormia ao relento num misto de remixes e a versão alternativa em japonês de Astroboy, ao que se é preciso fechar os olhos, beber uns golinhos e acreditar bastante para torná-los conteúdo primário para se comprar a cartela toda. Portanto, a mesma crítica a dollhouse poderia ser transportada para lá, na transposição da legitimidade e esforço de lançamento que remixes e recomposições carregam, todavia a classificação salva a botes o teor ameaçador que o acolhimento de um rascunho tem.
Parte 2. O discreto charme da burguesia safada
Enquanto a reação distópica segrega a apreciação geral, ela também contém uma premissa muito verossímil da análise do objeto: há muita ideologia em sutis parâmetros de comparação, requerente de um grau de imaginação e esperança que põe em alta as dúvidas pelos quais um juízo pode ser construído.
O fator demonstrativo que ocupa as faixas vêm para adjetivar uma jovialidade tatuada ao grupo, que ganha senso quando colocadas em perspectiva. Os lançamentos não fogem muito do som ministrado pela órfã discográfica Do It Again (feat. LIZ) em suas pontuações estéticas de alcançar uma solução intermediária que não fosse o inteiriço anglófono ou cultural japônico apresentado até então, e funcionam progressivamente na trilha de atualizar o som do duo, que é a grande conversa filosófica que dollhouse carrega na bandeja.
A reação arbitrária da internet questionava o corpus do EP, enquanto era o conteúdo a transmitir algum tipo de inovação. O lead contém o som menos característico da dupla, numa organização majestosa que irrompe o estranhamento público ao que se é agregado. As guias e todos os arquivos incompletos da setlist são um pronunciamento naturalista às manequins (e peço que, para que isso tudo faça sentido, ignorem a realidade de serem atrizes-vocalistas interpretando personagens inumanos). O esquete da imperfeição e do ao vivo vão contra o lugar-comum do maquinário programado, que responde fidedignamente a uma linguagem imposta.
Musicalmente, essa sentença também é impressa ao conter uma sonoridade contemporânea, que quebra o delicioso prognóstico de nostalgia e cafonice do conteúdo passado. Femm-Isation vende como espetacular suas limitações práticas, que requisitaram como contorno a compra de trabalhos datados para a obsolescência recreativa. Um dos motores da economia do entretenimento é a formação de modelos para seguir, que são ordenados em retratos plásticos e temporais. O fortuito de um movimento contrário pela avex foi repescar as sobras desses estilos (ressaltante pela proximidade de seus picos: a primeira década dos 2000 em paralelismo à metade da segunda década), com a virada de turnos de executar num molde inesperado. O mesmo esqueleto toma cargo em 80s/90s J-POP REVIVAL, que como o nome diz, se ancora numa lembrança mais deslocada e incorpora à contemporaneidade pelos arranjos noviços. São cenários novos feitos com conteúdos retificados que mantêm uma proporção de afetabilidade memorial sem decididamente se compor como regressão de valores. A construção é delicadamente planejada para desencadear o terceiro ato de performances, em que não há sustentação ou sonoridade que retomem uma melancolia, no entanto atualidades familiares pelo trânsito de faixas contrárias e equivalentes entre as duas porções formadoras do projeto.
Justamente na inclusão da PC Music como referência à introdução do post já temos uma ideia geral de como é funcional a concepção por trás do novo arco da produção. Apesar de uma significante curva de gênero para estabelecer que o que estão fazendo é, de fato, PC Music-induced, o meio termo que podemos chegar é que o som entre 2016 e 2018 tem uma mecânica bubblegum pop. É essa a exclusividade que os singles e extended plays dessa época têm à roda dos outros lançamentos, a partir do uso de letrismos (ou a ausência deles) originais.
Com essa assimilação, a súbita inclusão de motivos humanistas à peculiar narrativa de manequins socialmente ativos distorce a impressão comum de mudanças obrigadas pelo reconhecimento popular, tamanho o apuro envolvido nessa escalada.
O efeito Pinóquio se manteve crescente por todo o projeto, num brilhantismo em notas cômicas deixado às claras no mote inicial:
Do dolls have feelings?O contexto de tábula rasa em aprendizado na sociedade humana desloca o pensamento de John Locke (uhhhh, referências) para uma bizarra, coetânea interpretação que normatiza (e faz jus ao receituário) a ideia do amestramento desses dois indivíduos. Isso está fixo nas representações petulantes de situações diárias, com um incluso quê de desconexão nas observações muito calculistas desses habitats. É, por esse motivo, o que faz de Kiss The Rain tão especial, com a saudade matematizada na contagem do tempo e a icônica alegoria do beijo que desfaz feitiços - argumento clichê sempre utilizado nos contos de fada - resultando em uma sucção seca entre bonecas.
Do their songs move people?
Plastic exprime um peso maior ao dialogar ipis litteris a antítese do vivo e do plástico. A introdução descritiva corrobora para que o refrão soe pessoal, ao invés da característica personificação de uma terceira pessoa na surreal homenagem ao cabúqui (que é bem ilustrado no clipe Dead Wrong). A faixa, que imediatamente reminiscencia a favorita de todos os nossos corações, Barbie Girl do podrão nórdico AQUA, não acusa a prepotência de se apresentar como um hino da música popular, no entanto convergir com as intenções melódicas despretensiosas do modelo - lapidado em uma animação 3D desconfortavelmente riggada, acirradamente contribuinte para esse universo próprio da metáfora de fluidez inorgânica.
A outra titular não fica atrás na inclusão de uma mímese de humanidade e acaba, no processo, deixando à vista algumas das inaptidões práticas do projeto. Up Up&Away visita um conteúdo lírico épico ao tecer uma esteira temporal por referências para dar corpo à história e legado da dupla, concomitantemente adjetivando emoções às personagens em um trâmite comum à cultura Hip-Hop de Eminem e Jay-Z.
A teatralização é o grande suporte desse estímulo, convexo ao estilo europeu. Símio o cabúqui, esses vestígios dramáticos requerem um invólucro muito específico na mídia atendidos durante os espetáculos. O promocional de Up Up&Away responde a isso em uma apresentação imersiva cooperada pela Panasonic, derivado da interação por realidade aumentada (AR) e mista (MR) como vertente inovadora do mercado de entretenimento. O sustentáculo da dupla vem da caricatura restritiva das bonecas insertas na rotina humana, a partir de seus movimentos duros, semblantes vagos e a incorporação de vocoders e sintetizadores que tonificam o palco.
Num primeiro momento, a comparação mais próxima desse futurismo manipulado, vindo do Japão, é Perfume. O trio de mais de uma década segura nas costas o imenso peso de ter um dos movimentos japoneses mais cultuados no exterior pela qualidade e unicidade de suas rotinas. A comparação, no entanto, não é realmente justa, porque vem de tempos constitucionais diferentes do cenário musical. Mesmo que a oposição internacional vague por iguais remoques - os poucos intervalos fora do ato ou a servidão à música (que se porta numa troca de valores ao conduzir-se em segundo plano) -, Perfume se solidificou nativamente e fisicamente através do modelo comercial vigente do entretenimento. A intangibilidade do espaço fonográfico japônico que desencadeou o apreço além-mar ao grupo vem daquela máxima de que o desejo ronda o que não se pode ter. Não existindo competição hodierna equivalente à musicalidade e gráfica estelar na Europa ou América do Norte, a devoção a Perfume expandiu-se para além do receio cultural eugenista (por mais cômico e incongruente que essa frase soe) ocidental, na compreensão grandiosa que o oeste permite aos gringos conseguir.
Isso significa que a monstruosidade das integrantes, capazes de lotar gigantescos estádios em maquinais exclusivas apresentações logo aos seus 19 anos, reproduziria no resto do planeta em shows compartimentados, em auditórios adaptados a la SESC Palladium.
FEMM, na outra ponta, surgiu da tentativa de explorar o atrofiado pedaço de pizza de vendas digitais, protegido pela simbiose de poder navegar pelo mercado de língua inglesa. O debute suprime seus laços domésticos no material prosaico e melódico, com escassos motivos de identificação da comunidade local (como o subversivo DJ-ismo no cover de UFO, da dupla setentista Pink Lady). O reconhecimento herda principalidade em 80s/90s J-POP REVIVAL, porque se permite disputar presencialmente nas lojas japonesas.
O ânimo de desunião é mantido na percepção do espectador, embora a movimentação tenha sentido e espera para as conclusões do projeto. A equação, consequentemente, é consciente: FEMM é natural à mecânica moderna e por conta disso é submissa de sua retórica em níveis equiparantes de fascínio e preocupação.
A potência desenvolvedora habita a internet, que é anônima e generalista, cortando a premissa do distanciamento mítico que sobressaiu a Perfume. É o que evoca a crítica ser muito mais incisiva à laboração do ato, independentemente da indispensabilidade diegética significada pela submersão do espetáculo. A arbitrariedade dispersa é danosa para a coluna vertebral do teatro das manequins: por conta de serem tão tangíveis pela internet, o impacto não é imediato como o do trio, salvo pela diferenciação estética do mainstream ocidental. Essa mesma entrelinha, todavia, pode ser iterada à atual era de Perfume, no qual o som possível - da castigada fase ZEDD-ística de Yasutaka Nakata - insere um desapontamento ao público internacional para as ídolos.
Não obstante, os pormenores pós-punk refletem a praticabilidade das performances. O cenário clubber é fiel às subculturas, que contém elas ao seu catálogo. RiRi e LuLa são propostas de expressão artística. Significa, por conseguinte, que FEMM pode tanto existir nos clubes de Tóquio quanto no palco da A Autêntica em Belo Horizonte. Entretanto, esse não é um material de festivais, contribuindo para a barreira uterina de desenvolvimento. A diferença é que exatamente não devemos afirmar a espacialidade do grupo como uma lesão, porque essa organicidade rebelde manifesta iminentemente pelo digital. O esforço público é que precisa ser pontuado - e de certa forma houve uma tentativa interessante na fantasia da agência de patrocínio (vide o teaser), que hiberna negligenciado pela avex em detrimento de irrealistas expectativas de volume de usuários -, sob o refrão de estabelecer a longevidade musical da peça.
A virtualidade semeia o nome do projeto e quaisquer controvérsias traduzem-se como publicidade. dollhouse é punk, pop; imatura numa profundidade perfeccionista, ao que as polaridades sustentam a delicada complexidade na estética do EP.
FEMM constrói sua carreira à altura de suas pretensões, na timidez contrastante de uma trincheira não preparada para a extensão do combate. A realidade distópica de uma avex tão espaçada em suas convicções apostando seus esforços e moedas num instrumento incomum, estrangeiro e sistematicamente conflituoso prova o quanto a dupla - e toda a incrível equipe por trás do ato - é um aparato sublime a se fixar os olhos.
dollhouse(2018) - FAR EAST MENTION MANNEQUINS (FEMM) | AVEX ENTERTAINMENT INC. prós.: pancadão instrumental oásico com crises de personalidade + a ideia + os singles impecáveiscons.: trabalhos inconclusivos à espera de uma revisão no futuro (o suspense) + a capa horrívelfaixas sugeridas: Plastic, untitled 02 - work in progress, Up Up&Away, Shibuya Ex Holorogium - Adirector will write
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