Em BRAT voltamos a falar de clubes, tópico relevante para a música contemporânea nos bombardeamentos dos últimos anos feito RENAISSANCE, por Beyoncé, TENSION, de Kylie Minogue ou Future Nostalgia, de Dua Lipa, todos especiais pela interpretação da cena em vozes e versões de homenagem, que não se despedem do trabalho de Charli xcx. BRAT configura o tempo escolhido ao fim dos anos 2000 e início dos 2010, uma matriz pouco trabalhada até então, em que boate diz respeito ao dub, rave, edm em vez de nova discoteca e suas variações. Apesar do fator memória, o álbum não deixa de se demonstrar novo, o fazendo no anticlímax de não respeitar a amplitude das baladas em que músicas se perdem no tempo e são frequentemente estendidas e transformadas com suas produções alternativas. O inverso é proposto ao entregar tudo numa dose home office, incrivelmente parecido com a ideia dialogada nas entrevistas de Björk no que viria a ser o disco Fossora.
Fossora é difícil de ouvir, abarrotado de ideias e nivelado ao solo, com todas as lacunas, depressões e elevações perturbadas por toda a vida ali existente. Enquanto isso, BRAT é urbano, com um minimalismo aberto e empoeirado feito a boate de porão logo quando se abrem as portas para começar o expediente. A produção é mencionada, as referências são vívidas nos ouvidos do público e nada está ali para ser difícil de degustar. Tratar o autotune excessivo e as mudanças rápidas de ritmo como difíceis (o que poderia se afirmar nas visões mais experimentais da cantora, vide a mixtape Pop 2) é inadequado, pois estes já estão amplamente em jogo. Estão no trap, no rap, no pop, na bossa nova. Não esperar por isso chegando aqui – talvez por total omissão de quem é a artista, seus arredores e seu histórico – é tão peculiar quanto não esperar pela adoração a Jesus Cristo em uma igreja Cristã.
Nada ouvido neste álbum é novo por esta artista. Todo o
processo de se vestir e posar para ensaios fotográficos de revista,
olhar-se no espelho e se assustar com a própria existência ou mesmo de
delirar descontroladamente na velocidade de um carro estão em seu
catálogo. Nas suas letras – e certamente em seu som –, festas e
confissões foram descarregadas desde os primeiros envios na internet, e
respeitam (ou reproduzem) a idade e o mundo acerca dela. Isso é
magnífico! É a representação da autoria de um ser, que está além de sua
mão no papel e contextualiza toda a direção criativa de uma
carreira, cada ente envolvido e cada processo articulado na confecção de
um trabalho. BRAT catalisa essa essência ao trazer Charli xcx, uma moleca pirralha na festiva juventude dos 30 e poucos anos em roupas de gala amarrotadas, anunciando seus esforços e
apoiadores através de um álbum produzido e escrito por muitos e ainda
assim imensamente nu e emocional, sem se perder nos fios de diferentes
cores que tecem a imagem total.
Enquanto algumas escolhas estilísticas não serão favoritas aos ouvintes, como na música I think about it all the time, elas são honestamente confusas, desconexas e particularmente desumanas (você poderia até dizer que mimetizam o robótico) a fim de assimilar a veracidade sentimental das letras juntamente questionando o quanto essa realidade pode ser afirmada por uma celebridade em contínua ascensão, mas que com a carteira cheia, um coletivo surpreendente de amigos e uma plataforma de adoradores, ainda é humana. Importa isso tudo se na oclusão você se devora e o tempo te digere? A reflexão, que na teoria da ferradura é tão rasa feito um pires quanto profunda feito o núcleo da Terra, perpassa o álbum de maneira muito efetiva e ultrapassa o gosto da qualidade estética dessa, de uma ou de outra música.
Todavia, não devemos negligenciar alguns extremos ilustrativos: na proposta de criar uma caricatura de indivíduos (existentes ou fictícios) engatados na sessão pública de ânimos da artista, a anonimidade e o enfoque descritivo dessas pessoas tendem a se pender para o cartunesco e elaboram uma situação de mau gosto. Embora sejam estas as partes liricamente mais intensas e criativas do álbum (afinal são imaginações extrapoladas e facilitadas para a alimentação dos ouvintes), distantes das súmulas autoflageladas ou revigorantes, elas são próximas de uma birra e incrivelmente partidárias ao nome do álbum. Mesmo assim, dos prós e contras, a confissão em comunidade é um espetáculo, e talvez a maior diferença dessa e das outras tentativas de demonstração da introversão e inseguranças pessoais em sua música é torná-las bem reveladas aqui, sob a clareza de um holofote. Numa boa balada ninguém se importa com o sofrimento, que durante o belíssimo álbum Charli é escondido entre participações especiais; ou nos cinebiográficos SUCKER e CRASH numa versão dramática da pessoa refletida no espelho.
BRAT é enxuto, direto e prazeroso, tão honesto quanto pode ser e merecemos ter. Assim é entregue a sua noite em nossas mãos, feito o misterioso e pirralho bebê de Rosemary. Sem rosto, apenas uma tela verde onipresente e superlativa com a sombra de um nome e seu som pulsante.
BRAT (2024)- Charli xcx | Atlantic Recording Corporationprós.: álbum justo e coeso + simplicidade, tema e entrega espetaculares.
cons.: pirralho tal qual o nome.
★★★★★ 5/5
👍
Nenhum comentário:
Postar um comentário